O Espírito da Água

Os copinhos de plástico arrumados ao redor da jarra transparente,  formavam um arranjo circular e curioso, que aguçava a imaginação das  crianças que vez ou outra entravam no salão esperando a hora do objeto  de desejo ser liberado para o consumo.  Cupcakes não fariam melhor e a  ansiedade infantil já começava a contagiar os mais velhos presentes, que  lançavam olhares dissimulados para a mesa afastada no canto da sala. 
Um e outro bebê choravam e eram embalados pelo movimento das pernas das  mães, mas relutavam no choro até que um pai envergonhado pelos olhares  críticos vindos dos componentes da mesa resolve sair e respirar a fresca  da noite, contrastante com o ar pesado e quente que duelava com os  barulhentos ventiladores de teto do ambiente.
O Ritual ainda  estava no meio... Já acabara a oração inicial embalada por uma música  orquestrada que lembrava a Ave Maria, já houvera a troca de confetes  entre o palestrante e os dirigentes, o pedido de silêncio por uma  senhora firme e os recursos áudio-visuais já tinham sido explorados – O  hino de São Francisco de Assis, acompanhado em canto pelos presentes e  enfim  a palestra  do dia ilustrada por slides, que falava como todas as  anteriores, na importância da caridade, da benevolência, das provas e  da aceitação. 
Volta e meia, Francisco e André eram citados, e  excertos de suas obras exemplificavam o ensinamento do Palestrante. A  dirigente lembra que há no lugar um estudo sistematizado sobre as obras  do último autor e a importância de adquiri-las. 
Desavisados,  alguns participantes, neófitos, sedentos de conhecer, se inquietavam nas  cadeiras de plástico, fugindo por instantes da atmosfera real do lugar e  forçando a vista para enxergar vultos (inexistentes), espíritos (não  presentes) e algo que enfim mostrasse o que destoava no Espiritismo das  velhas igrejas... A ausência de Kardec e de outros pensadores espíritas  na fala dos presentes suscitou a dúvida de que era realmente aquele, o  endereço conseguido na internet, do Centro Espírita do bairro.
Os pensamentos incautos, foram interrompidos pela despedida do  palestrante,pelos avisos gerais e pelo levantar apressado da platéia que  se dividiu entre a fila para uma saleta anexa e a saída, não sem antes  avançarem quase todos para os cupcakes, digo, para os copinhos d’água  abençoados pelos espíritos que respondiam pela casa. 
Os mais  necessitados, substituíam os copinhos de café pelos de água, aumentando a  dose do remédio espiritual...sem temer superdosagem ou overdose de  proteção.
Na saleta ao lado, as mãos suspensas sobre as cabeças  submissas, davam benção, permissão e direção para seguirem em paz para  suas casas até a semana seguinte.  Um último copinho de água  fluidificada - que realmente não estava sólida em nenhum dos copinhos -  fechava o ritual tão inesperado por sua mesmice.
Do lado de  fora, uma lufada inesperada de vento seca o rosto choroso dos bebês,  entra na salão e dança em volta da jarra que tem um resto de água morna e   em seguida uma chuva gostosa começa a cair lentamente sobre os  neófitos que caminham até os carros estacionados. E ninguém apressa o  passo.
- Chuva inusitada numa noite tão abafada! Um verdadeiro milagre de Deus. Disse um.
- Feito o Espiristimo? Interrompe o outro.
- Feito o  Espírito da água, ri o primeiro apontando  para o céu.  Fenômeno natural  e milagrosamente simples. Te encontro mais tarde na  net naquela comunidade que fala de Kardec...
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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