O Espírito da Terra

Miguel sentia que aquele dia seria diferente. Sempre que os dias  passavam sem que chegassem novas mensagens ele se sentia assim...Na  noite anterior, fez uma linda oração, pedindo a Deus que Tertuliano se  comunicasse novamente se fosse de seu merecimento. Naqueles dias  difíceis, suas palavras eram bálsamos aplacando a saudade desesperadora.  Andou depressa pela rua sinuosa, procurando se proteger na sombra de  velhas árvores que se enfileiravam na rua de terra batida. As mensagens  eram recebidas por Bernardo, que bondosamente lhe recebia na varanda da  casa simples.
Desta vez, Tertuliano foi mais didático ao descrever seu novo mundo.
Dava detalhes recheados de poesia sobre suas impressões desde a sua  chegada até aquele momento. Os olhos de Miguel se enchiam de lágrimas  enquanto Bernardo lhe transmitia as palavras saudosas. Tertuliano contou  do seu medo na chegada, dos amigos que partiram antes dele e lhe  receberam e serviram de guia para enfrentar sua nova realidade. Segundo  Tertuliano, o lugar era parecido com sua terra, mas de um jeito  diferente. Muitas flores bem cuidadas cercavam os jardins das casas que  não tinham muros nem cadeados. Nem sinal da violência que fora a  causadora da sua partida inesperada. Falou também que o anoitecer lá era  diferente, que o sol demorava a ir embora... E a comida... Ah! Não  tinha todos os temperos com os quais estavam acostumados, mas o  resultado era divino! Segundo os amigos, muito trabalho lhe esperava, e  as recompensas certamente viriam após as árduas tarefas que lhe  aguardavam. Contou também das leis rígidas do lugar, o que lhe havia  surpreendido... Contou ainda dos novos amigos que vieram de diferentes  lugares e reunidos pelo destino comum faziam juntos, reuniões de  alegria, preces e lembranças de familiares.
Quando Tertuliano  partiu, Miguel temeu nunca mais ter notícias do filho. Infelizmente,  desgraçado pela sorte, nunca pode aprender a ler e a escrever e aquele  nomezinho escrito por Tertuliano num saco de pipoca não faria sentido  algum se Bernardo - ex-presidiário que estava terminado o ensino médio  na escola onde Miguel há 20 anos vendia sua pipoca religiosamente na  hora do recreio – não se oferecesse para intermediar o contato entre ele  e seu filho que tinha ido para o estrangeiro, buscar uma vida melhor,  após um assalto que lhe tirou o único bem que possuía: Seu taxi. Aquele  nome no papel, segundo Bernardo, se chamava e-mail, e funcionava como  uma ponte onde pai e filho poderiam se comunicar.
Miguel saiu  da casa amarela, fechou o portão enferrujado atrás de si e sorrindo,  pensou no futuro que lhe aguardava ao lado de Tertuliano, segundo o  filho lhe prometera.
Passou por uma praça, sentou num banco,  fez uma prece silenciosa e agradeceu a Deus por ter colocado Bernardo em  seu caminho. Ao seu lado um livro esquecido por alguém estava aberto  numa página que dizia o seguinte:
“573. Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados?
— Instruir os homens, ajudá-los a avançar, melhorar as suas  instituições por meios diretos e materiais. Mas as missões são mais ou  menos gerais e importantes. Aquele que cultiva a terra cumpre uma  missão, como aquele que governa ou aquele que instrui. Tudo se encadeia  na Natureza; ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação,  também concorre por essa forma para o cumprimento dos desígnios da  Providencia. Cada um tem a sua missão neste mundo, porque cada um pode  ser útil em algum sentido”
Mas Miguel não leu. Levantou devagar  e seguiu seu caminho ignorando o livro, desprovido que estava da  capacidade de leitura, mas em seu coração intuía a força dos Espíritos  da Terra.
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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